Talvez o nosso imaginativo Senhor do Tempo desconhecesse o kairos, pois certamente pensaria numa forma de controlá-lo. É bom lembrar, ainda que pese meu quase ateísmo, que em Teologia, “kairos” é “o tempo de Deus”. Khronos refere-se ao tempo cronológico, ou sequencial, que pode ser medido e kairos refere-se a um momento indeterminado no tempo, em que algo especial acontece. Khronos e kairos eram as duas palavras utilizadas pelos gregos para designar o tempo. Admirável feito da maquiavélica engenhosidade humana. Não tivesse o nosso anti-herói confessado o ilícito, essa notável conduta antiética não teria gerado este texto. Eram poucos os minutos adicionados por hora de jogo, mas inegavelmente conferiam significativa “gersiana” vantagem a esse que justifica o título desta crônica: “O Senhor do Tempo”. Usava um dos relógios quando jogava de brancas e outro, com as negras. Esse golpe seria imperceptível até mesmo aos grandes mestres.
Com o auxílio de um hábil relojoeiro, alterou o funcionamento desses relógios para que, em um dos mecanismos, o tempo fosse mais acelerado e, no outro, um atraso calculado para a devida compensação, de tal forma que a soma dos tempos acompanhasse o tempo das demais partidas. Cada um deles programado técnica e especificamente para obter suas vantagens extra-tabuleiro – não sei se a expressão é a mais adequada. Há alguns anos, inexplicavelmente confessou a um jogador, ao final de um torneio, que sempre levava em sua mochila dois relógios analógicos nas competições. Essa foi mais uma de suas manobras táticas. Inconformado com a rigidez do controle de tempo, esse criativo e inescrupuloso damista resolveu, a exemplo do titã mitológico grego, Khronos, apoderar-se do domínio do tempo. Transferiu, dos tabuleiros, esse seu estilo até mesmo para vida, quando as circunstâncias lhe fossem favoráveis, ou, quando estas eram adversas, sempre buscou espertamente alguma forma de desestabilização como estratégia de alterar tudo que estivesse aparentemente definido.
Especialista em golpes e ciladas de abertura, vencia com facilidade os menos experientes, mas era talentoso em criar complicações táticas para os experts. Seu estilo, numa linguagem damística, era o tático. Por muitos anos, um damista paulista recorreu a uma criativa atitude desonesta. O gosto pelo desafio de alterar o status quo – situação atualmente estabelecida – exerce um estranho domínio sobre alguns, especialmente os revolucionários e, por outro lado, os oportunistas de plantão, estes sempre motivados pela Lei de Gérson, cuja concepção – explicação para os mais novos – é de que, na vida, a ideia é levar vantagem em tudo. Existem até normas oficiais que regulamentam essas situações, ainda que todas as normas parecem ter sido inventadas para ser burladas. No caso do problema ser notado, em competições mais formais, chama-se o árbitro e alguma medida saneadora será aplicada, com a devida correção do tempo. Em tempo, o tempo (sem trocadilhos) é tão relativo que para damistas de alto rendimento não vale a máxima: “Time is money”.Īlguns relógios, porém, principalmente os analógicos, apresentam defeitos que podem eventualmente prejudicar ou favorecer um dos competidores, quando esse problema não é percebido.
Quanto a isso, é importante lembrar que o tempo psicológico decisivamente não corresponde ao tempo físico. Alguém mais crítico poderia dizer: “Oras, o tempo é igual para os dois damistas, não havendo assim nenhuma injustiça”. Não é fácil, por exemplo, encontrar uma sequência de dez, vinte lances, em menos de trinta segundos, ou menos. Com o relógio não foi diferente.Ī pressão exercida pelo tempo exige nervos de aço dos competidores. Essa é a dialética das estratégias humanas. Mas, como já é de domínio público, toda solução gera novos problemas.Ī propósito, jogar damas também é uma forma de solucionar problemas que antes, do início da partida, não existiam. Quando um jogador, ao finalizar sua jogada no tabuleiro, aciona o seu mecanismo de tempo, imediatamente o andamento de seu tempo é interrompido e o tempo passa a correr apenas para o oponente. Cada jogador, com o controle específico no relógio, dispõe de um tempo convencionado para jogar a partida. O relógio com dois mostradores veio para solucionar o problema. No passado, um jogador chegava a demorar horas, ou um dia todo, segundo alguns registros, para fazer até mesmo um único lance, ora por preciosismo, ora pela complexidade de uma posição, ou até mesmo como tática antiética para desestabilizar o adversário.Ĭriou-se, por isso, necessidade de se coibir esses abusos. Figura obrigatória nas competições, o relógio de damas cria dificuldades adicionais para os jogadores, porém sua utilização é imprescindível.